Em fevereiro, o CADE julgou consulta a respeito da adequação do Guia de Avaliação de Impacto Concorrencial de Terminais Portuários elaborado pela Secretaria Nacional de Portos como referência para os projetos de outorgas daquela pasta. O resultado do julgamento foi que as consulentes não possuem legitimidade para formular a consulta. Foi determinada, no entanto, a notificação da Secretaria de Advocacia da Concorrência e Competitividade do Ministério da Economia para que avalie o caso.
Apesar desse entendimento, a Conselheira-Relatora entendeu que havia, sim, legitimidade, e, avaliando o mérito, entendeu que o guia não estava em linha com a jurisprudência do CADE. Mesmo os conselheiros que votaram pela ausência de legitimidade, concordaram com as ponderações de mérito, que foram:
- o guia presume a competição entre terminais como sendo interportos, enquanto o CADE entende que a competição se dá apenas dentro de um mesmo porto;
- o guia define como presunção de posição dominante o share de 40% do mercado, enquanto o CADE nunca definiu tal limite acima de 30%;
- o guia não deve limitar a análise de rivalidade no setor aos elementos de market share, índice HHI, capacidade ociosa e previsões de demanda; e
- em caso de integração vertical, a análise do Poder Concedente não deve se limitar à avaliação de fechamento de mercado pela empresa verticalizada.
Independentemente do resultado do julgado, é importante analisarmos as diferenças de olhar do CADE e da SNPTA. Ainda que ambos tenham competência concorrencial sobre a matéria, isto é, o dever de avaliação do cenário, seus objetivos e, portanto, suas visões são diferentes.
De um lado, o CADE se pauta pelos ditames constitucionais de liberdade de iniciativa, livre concorrência, função social da propriedade, defesa dos consumidores e repressão ao abuso do poder econômico (art. 1º, Lei do CADE). Ou seja, possui um viés protetivo, de defesa, que nos remonta até mesmo ao princípio da prevenção, como utilizado no direito ambiental.
Já a SNPTA é pautada pela melhoria da infraestrutura, serviços e mão-de-obra, modicidade de preços, proteção aos usuários, promoção da segurança, estímulo à concorrência e liberdade de preços (art. 3º da Lei de Portos). Ainda que haja diretrizes de proteção à concorrência, estas dividem espaço com o que talvez seja a principal função do ente: o desenvolvimento do setor como um todo.
Essa diferença tem consequências práticas: para o CADE, que tem a função de defender a concorrência, prejuízos concorrenciais são menos toleráveis. Mesmo que o órgão se ponha a analisar os ônus e os bônus nos casos em que atua, o CADE pode não ser o local ideal para realizar essa avaliação quando o que se põe do outro lado é o planejamento de política pública.
Além disso, o ônus, pelo menos argumentativo, para o CADE tolerar um trade-off entre correr um risco concorrencial no presente em prol do desenvolvimento futuro de um setor é maior.
Por exemplo, ainda sofremos com um baixo nível de investimentos em infraestrutura. Uma opção que pode melhorar esse cenário é uma maior concentração de mercado em alguns players, o que potencializaria a atração de capitais para os projetos. Essa visão parece ser mais aceitável para quem tem como objetivo principal o desenvolvimento do setor.
Mesmo no âmbito antitruste se admite que o Estado estabeleça políticas que diretamente acarretem efeitos anticompetitivos (pela state-action doctrine). Mais, sabe-se bem que as circunstâncias do mercado específico são fundamentais para análise concorrencial, preponderando sobre fórmula únicas.
No caso da competição intra ou interportos, as regiões portuárias mais desenvolvidas alcançaram o patamar de competição entre portos em diversos países, como no caso do norte europeu.
Para que se chegue em tal cenário, é necessário infraestrutura portuária com capacidade suficiente para disputar as cargas em zonas de influência maiores. Caso se entenda, no entanto, que a competição hoje é apenas intraporto, a referência para avaliar o tamanho dos terminais será muito baixa. Ainda que sejam considerados grandes, no cenário intraporto, continuarão sendo pequenos, na realidade interporto.
O que vem primeiro? E se estivermos em um “período de transição”, migrando de uma realidade intraporto para interportos? A implementação do programa BR do Mar não terá nenhum impacto sobre esse cenário?
O órgão de definição de política pública parece ser local mais adequado para responder essas questões. Isso não significa que o CADE esteja impedido ou não faça essas considerações, mas sim que a prática do órgão possa fazer a avaliação pender mais para um lado.
Esse fato enseja cuidado ao se avaliar políticas públicas. A preocupação com a ordem concorrencial é sempre válida, mas importante lembrar que não é um fim em si, para que não se proteja a concorrência, mas em prejuízo de outros objetivos igualmente relevantes.