Artigo – Comércio exterior e reforma tributária

Melhor seria, diante da imensa alteração que advirá com a reforma tributária, ter uma lei complementar própria para comércio exterior e direito aduaneiro

É difícil exagerar a relevância do comércio exterior. Suas implicações estão relacionadas com o desenvolvimento econômico de um país, com sua inserção no cenário internacional, com a política industrial que pretende perseguir, e que terá imensos impactos para sua economia e seu emprego futuro.

No Brasil, essa percepção quanto à relevância do comércio exterior nem sempre é clara. Debates sobre o comércio exterior ficam circunscritos a aspectos aduaneiros ou quando muito à interação com a cobrança de tributos aduaneiros, com foco meramente fiscalista.

A limitação ontológica quanto ao aspecto multifacetado do comércio exterior se repete, agora, no debate sobre reforma tributária. No Projeto de Lei Complementar (PLP) nº 68, que condensa as propostas do governo, salpicam aqui e ali regras sobre comércio exterior e, sob o manto da regulamentação da CBS e do IBS, criam-se impactos econômicos relevantes para o futuro do comércio exterior no país.

Melhor seria, diante da imensa alteração que advirá com a reforma tributária, ter uma lei complementar própria para comércio exterior e direito aduaneiro, de forma a organizar a miríade de normas que atualmente se entrecruzam. Não sendo possível uma lei complementar autônoma, melhor que o PLP remeta às regras existentes, para evitar que frases vagas possam causar maior insegurança jurídica no futuro. Afinal, nessa reforma em cavalgada, o diabo pode estar em cada detalhe.

E isso porque, lendo o texto do PLP 68, um outro dito norte-americano vem à memória: não se deve consertar o que está funcionando (“If ain’t broken, don’t fix it”).

Em vários momentos, a proposta de legislação, se aprovada como está, vai provocar danos a institutos testados e que hoje funcionam. O primeiro caso é o de drawback: criado em 1965, é um mecanismo fundamental para os exportadores – hoje, mais de 40% das exportações industriais se beneficiam desse regime.  Entretanto, o PLP 68 não prevê o drawback de serviços, que já foi criado pela Lei nº 14.440/2022, traz texto confuso sobre o drawback isenção, e não menciona outros procedimentos como o drawback intermediário, ou o drawback embarcação, ou o drawback fornecimento mercado interno. Como está, o texto desfigura um regime que funciona bem há décadas.

Algumas áreas do governo vão redarguir que, com a sistemática da compensação de créditos e com uma devolução mais célere, os exportadores não terão mais o acúmulo de créditos que hoje inviabiliza sua atividade econômica. Isso pode ser verdade em alguns casos mas para empresas que sejam preponderantemente exportadoras, a suspensão do pagamento de tributos tem papel fundamental em seu fluxo de caixa, e permite a continuidade do negócio. Além do que, para as microempresas exportadoras (poucas há, infelizmente) o drawback de serviços pode constituir um incentivo fundamental na decisão de exportar.

Outro exemplo se refere às várias passagens que tratam das empresas comerciais exportadoras, as conhecidas tradings. Essas empresas trazem eficiência ao comércio exterior, na medida em que consolidam cargas e provêm escala na importação e na exportação, permitido operações que são inacessíveis para empresas menores. A criação e a operação de uma trading já são submetidas atualmente a uma fiscalização extremada pela Receita Federal.

Mas o PLP 68 consegue complicar ainda mais a situação das tradings. Assim, o texto exige que sejam também certificados pelo programa de operador econômico autorizado (artigo 81 do PLP), passa a exigir para sua habilitação a intervenção do comitê gestor do IBS, permite que o cancelamento da habilitação da empresa seja realizado também pela administração estadual ou municipal (artigo 82), e ainda impõe à trading a responsabilidade do recolhimento do imposto seletivo que deveria ser pago na cadeia de fabricação (artigo 411). Tais regras transformarão as tradings numa atividade de alto risco, dificultando ainda mais a atuação desses intermediários que são essenciais para a promoção do comércio exterior brasileiro.

Ao complicar, desnecessariamente, a atuação das tradings, o PLP também se desvia da prática internacional, tão louvada pelos autores da reforma tributária. Mundo afora, as legislações nacionais facilitam a atuação das tradings, inclusive com incentivos fiscais, para que auxiliem no acesso a novos mercados e na promoção do comércio exterior. Ao fustigá-las com legislação restritiva, o Brasil seguiria em sentido contrário, agregando custos de transação a uma atividade empresarial que não se caracteriza pela falta de complexidade.

As observações anteriores não pretendem minimizar a relevância da reforma tributária. Há enorme expectativa da sociedade brasileira: espera-se que a simplificação tributária possa trazer eficiência econômica reduzindo a perda de tempo e a insegurança em que o atual modelo tributário é pródigo.

Entretanto, há que cuidar para que equívocos como os citados acima não passem pela revisão, necessariamente acelerada, a ser protagonizada pelo Congresso Nacional. Espera-se que essa revisão seja capaz de manter os princípios constitucionais que vêm sendo insistentemente repetidos nos últimos dias. Espera-se também que algumas regras de bom senso prevaleçam, o que inclui não alterar, no comércio exterior, o que não está quebrado.

Por Welber Barral

Welber Barral é sócio de Barral Parente Pinheiro Advogados, Doutor em Direito Internacional (USP)