PEC que exige aval do Congresso para empréstimo de banco público reacende discussão e divide indústria e economistas
Por Marta Watanabe e Mônica Scaramuzzo — De São Paulo
O avanço na Câmara de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) estabelecendo que os empréstimos de bancos públicos controlados pela União precisam de aval do Congresso quando envolverem operações externas acirra o debate sobre o tema entre representantes da indústria, especialistas em comércio exterior e em contas públicas e parlamentares.
Enquanto alguns defendem a necessidade de um política industrial que envolva financiamento à exportação de bens e serviços, outros apontam a necessidade de se discutir o papel do BNDES mediante a maior participação do mercado financeiro no crédito a grandes empresas.
Há um entendimento de que o assunto virou uma disputa ideológica, tanto do atual governo, que defende maior participação do BNDES, como da oposição, que quer que o Congresso tenha maior controle das ações dos bancos que pertencem à União.
“O Brasil já foi um grande exportador de serviços e o BNDES teve papel importante nisso”, diz Pedro Wongtschowski, acionista do grupo Ultra e um dos principais representantes da indústria. Entre 1998 e 2017, lembra o empresário, o banco financiou o equivalente a R$ 22 bilhões em exportações. “Hoje isso é quase zero.” A Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) e a Confederação Nacional das Indústria (CNI) seguem essa mesma linha.
Para Wongtschowski, o período atual é o “momento certo” para discutir o tema. O Brasil, diz, está com “superávit comercial fantástico”, o que dá oportunidade para concretizar acordos comerciais e implementar uma política de atualização da indústria nacional.
Isso vai exigir, segundo Wongtschowski, abertura comercial que permita importar instrumentos e máquinas para o aumento da produtividade no setor. Também é a oportunidade para retomada do financiamento à exportação de serviços, pela qual se comercializa conhecimento, quase sempre associado à exportação de bens industriais. “Um projeto de engenharia usa equipamentos, instalações e conhecimento disponíveis no Brasil e tem impacto muito grande no setor industrial.”
A proposta de PEC em tramitação, diz ele, traz receios de que se coloque entraves ao crédito à exportação pelo BNDES. Esse tipo de financiamento, defende, demanda a atuação de um banco público porque o mercado financeiro não é capaz de oferecer juros competitivos.
É preciso de ter uma base técnica, analisar o que já tem e fazer o desenho”
— Zeina Latif
No Congresso, foram protocoladas em março deste ano as PECs dos deputados Mendonça Filho (União-PE) e Daniel Freitas (PL-SC). Ambas tramitam juntas. Segundo Mendonça Filho, o PT impôs resistência para discussão do tema na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania (CCJ) da Câmara, que é presidida pelo petista Ruy Falcão. O governo vem sendo derrotado na tentativa de tirar o projeto da pauta. Com apoio de parte da base governista, a proposta avançou recentemente na tramitação na CCJ.
A Proposta de Emenda à Constituição (PEC 3/2023), referente à atuação do BNDES no exterior, acrescenta dispositivo atribuindo ao Congresso autorizar a realizar operações de crédito por instituições financeiras controladas pela União. O projeto pode bloquear financiamentos do BNDES a obras e serviços no exterior e afetar também empréstimos internacionais da Caixa e do Banco do Brasil.
“Queremos evitar o que aconteceu em Cuba, Venezuela e Moçambique. Vejo uma clara pressão do BNDES para retomada dos financiamentos, só espero que não seja uma decisão respaldada pelo Aloízio Mercadante [presidente do BNDES]”, diz Mendonça Filho. O deputado se refere a operações relativas a exportação de serviços do BNDES de 1998 a 2017 e que resultaram em inadimplência.
Segundo o BNDES informa em seu site, houve falta de pagamento de US$ 740 milhões da Venezuela, de US$ 122 milhões de Moçambique e US$ 261 milhões de Cuba, em valor total de US$ 1,1 bilhão acumulado até junho de 2023.
Ainda segundo o banco, no mesmo período de 19 anos foram desembolsados cerca de US$ 10,5 bilhões, para empreendimentos em 15 países, sendo que US$ 12,8 bilhões retornaram em pagamentos do valor principal da dívida e juros, até setembro de 2022.
O deputado disse que a emenda quer estabelecer parâmetros, mas que é favorável à inserção das empresas ao mercado internacional. “Aqui não é guerra de narrativa. Sou liberal e podemos discutir a PEC, mas acredito que tenha um viés ideológico do governo.”
Para a economista Zeina Latif, sócia-diretora da Gilbratar Consulting, é preciso definir melhor o papel do BNDES no financiamento às exportações. “Não se trata de dogma se o BNDES pode ou não pode. Pode. Outros países financiam. É preciso de ter, contudo, uma base técnica, analisar o que já tem e fazer o desenho.”
Zeina acha importante fazer um debate sobre qual a melhor forma e o uso dos recursos do banco de fomento para financiar as exportações. “É importante que não esteja [concentrado] nos grandes grupos que podem se financiar no mercado. É o melhor uso do recurso? Financiar um grande grupo que tem condição de captar de outra forma ou o pequeno? Seria um estímulo para essas empresas [de pequeno e médio porte] investir, buscar inovação. Essas empresas empregam muito. Ou seja, há efeitos de segunda ordem que são benignos.”
Há falhas no financiamento às exportações, inclusive nos países com sistema financeiro mais sofisticado e que as empresas conseguem prover garantias. “O papel do BNDES é corrigir falhas do mercado. E a falta de crédito para empresas menores acaba sendo uma barreira. Há todo um custo de procurar mercado, buscar parceiros, ajustar o produto ao perfil da demanda externa e regulatório.”
Ao Valor o diretor de desenvolvimento produtivo, inovação e comércio exterior do BNDES, José Luis Gordon, disse que o banco não financia país e defende que a instituição possa dar suporte às grandes empresas, como forma de ajudar as pequenas e médias que complementam a cadeia industrial.
“O governo quer ajudar as empresas a ampliar seu espaço no mercado internacional. Todos os grandes países desenvolvidos fazem isso, inclusive ajudando grandes grupos”, disse. Para que grandes companhias se fortaleçam no mercado internacional, segundo ele, é preciso apoio do banco.
“Default faz parte. É um risco, mas no histórico do banco, de 1991 até recentemente, foram financiados cerca de US$ 100 bilhões em exportações, com cerca de US$ 1 bilhão em inadimplência”, afirma.
O governo pretende levar ao Congresso ainda este ano projeto de lei já em discussão com o Tribunal de Contas da União para aprovar melhores práticas do BNDES no financiamento de exportações, que inclui bens e serviços.
Evaristo Pinheiro, sócio do escritório Barral Parente Pinheiro, diz que o crédito oficial à exportação é “um business de Estados”, que serve fundamentalmente para suprir uma lacuna de mercado. “O mundo faz isso porque considera vantajoso. Embora esse entendimento não esteja consolidado no Brasil, há clareza muito grande que ter crédito oficial à exportação é benéfico para a exportação, para a indústria e para a geração de empregos. É assim na China, Índia, Europa e Estados Unidos.”
A lacuna de mercado, explica, está em grandes projetos. Segundo dados da OCDE, diz, o crédito oficial à exportação vai principalmente para exportação de embarcações ou aeronaves ou para projetos de infraestrutura, como usinas hidrelétricas, termelétricas, eólicas, de energia solar. “É onde os bancos não entram, porque o risco é alto e os prazos são longos.”
As operações que existem hoje no mundo, explica, se desenvolveram a partir de uma espécie de arranjo de cavalheiros com parâmetros da OCDE. São parâmetros, diz, como prazo de financiamento máximo, de percentual de financiamento máximo e de taxa de juros. “Na verdade, no decorrer do tempo, os países que usam esse arranjo sofisticaram seus produtos com oferta de garantias incondicionais para exportação, por exemplo.”
Há também, dentro do arranjo, países que oferecem o chamado crédito concessional, feito em condições mais benéficas, como taxas abaixo dos padrões estabelecidos pela OCDE, em contexto bem específico. “O Brasil não faz esse tipo de crédito, mas também não tem condições fiscais para isso.”
Ele diz, porém, que discorda do argumento de que o Brasil deve cuidar de outras “mazelas” antes de priorizar o crédito à exportação. “O Brasil tem parque industrial em alguns nichos como o de aeronave e de defesa. Os países que concorrem conosco são os países desenvolvidos, além de China e Índia. Na comparação com eles, a média de desembolso do Brasil está na rabeira.” O Brasil, defende, está entre as 15 maiores economias mundiais e deveria ter um nível de crédito oficial à exportação compatível.
Fonte: VALOR ECONOMICO