“Nada impede tanto ser natural como o desejo de parecê-lo”[1] é uma máxima do Duque de La Rochefoucauld que ecoa entre os ouvintes dos áudios de André Janones (AVANTE-MG), em particular quando o parlamentar, após descrever a expectativa do repasse de dinheiro de seus assessores, diz que “não considera isso uma corrupção” (sic). A abertura de inquérito pelos crimes de associação criminosa, peculato e concussão, por decisão do Min. Luiz Fux[2], já demonstra que os fatos não são banais como o deputado federal presumia.
Paralelamente, houve a representação por quebra de decoro parlamentar pelo Partido Liberal ao Conselho de Ética e Decoro Parlamentar (COETICA).[3] Na peça, o PL cita julgado do TSE[4] para demonstrar a reprovabilidade do superfaturamento da remuneração individual de assessores para apropriação, o que se identificou a partir da fala do deputado quando disse que conversaria com algumas pessoas “que vão receber um pouco de salário a mais”. Pela suposta “rachadinha”, o PL pede a cassação do mandado parlamentar com fundamento nos art. 3º, inciso II e IV, art. 4º, incisos I, II e VI, e art. 5º, incisos II e VII, todos do Código de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara dos Deputados (CEDP).
Assim, qual o risco que o deputado corre de ter a perda extraordinária do seu mandato decretada pela Casa? Tal cenário coloca o conceito de decoro parlamentar e o histórico de cassações da Câmara dos Deputados no centro do debate jurídico.
Se nos ampararmos apenas no § 1º do art. 55 da Constituição de 1988, esbarramos nas expressões conhecidas de cunho generalista. O CEDP, por sua vez, elenca os atos incompatíveis com o decoro[5], puníveis com perda do mandato, e os atos atentatórios contra o decoro[6], passíveis de censura verbal ou escrita, suspensão de prerrogativas regimentais e suspensão temporária do exercício do mandato. Considerando o pedido, analisamos as hipóteses do art. 4º do CEDP listadas pelo PL na REP 29/2023.
Sobre essas, apenas a do inciso II é razoavelmente precisa, por materializar o recebimento de benefício pelo parlamentar. A expressão “a qualquer título” indica que pouco importa se houve dispêndio pessoal para obter a vantagem indevida. Também punível na modalidade tentada, mesmo que a redação abra espaço para discussão quanto ao resultado.[7] Logo, a configuração de quaisquer das condutas dos arts. 312 e 316 do Código Penal já pode atrair a sanção disciplinar.
Como a análise do CEDP não reduz satisfatoriamente a amplitude do texto constitucional, a avaliação sobre a conduta incompatível fica para deliberação no COETICA. E é porque o conceito de decoro parlamentar é necessariamente impreciso, por sua configuração moral-política, que fica atraída essa posição ativa do Conselho, pois é necessário aferir se a conduta ofende a dignidade e honorabilidade do Poder Legislativo.[8] Por isso, uma forma de avaliar os riscos que o deputado corre de perder o seu mandato é investigar as cassações decretadas após a votação do Plenário da Câmara dos Deputados a partir do histórico do COETICA.[9]
A página disponibiliza representações apresentadas ao Conselho de 2002 a 2023. Exceto pelos anos de 2005 e 2006, quando o órgão apreciava casos relacionados ao Mensalão e à Operação Sanguessuga, respectivamente, o índice anual das últimas duas décadas foi relativamente baixo, tendo começado a escalada a partir de 2019.
De lá para cá, identificamos oito casos concluídos com a perda extraordinária de mandato: André Luiz (sem partido, RJ), em 2004; Roberto Jefferson (PTB-RJ), José Dirceu (PT-SP) e Pedro Corrêa (PP-PE), em 2005; Natan Donadon (PMDB-RO), em 2013; André Vargas (PT-PR), em 2014; Eduardo Cunha (PMDB-RJ), em 2015; e Flordelis (PSD-RJ), em 2021. Lembramos que Daniel Silveira (PTB-RJ) teve a perda do mandato decretada por força de decisão do Plenário do STF na AP 1.044/DF, com base no art. 55, incisos III e VI, da Constituição de 1988, não sendo pertinente à análise.
Neste escopo, a cassação por quebra do decoro parlamentar se deu por acusações variadas, abrangendo desde a acusação sem provas de participação no Mensalão, caso de Roberto Jefferson, a acusações de homicídio, que justificou a perda do mandato de Flordelis. Próximo ao caso de André Janones é o de Natan Donadon que, apesar de não ser implicado em “rachadinhas”, perdeu o mandato por acusações dos crimes de peculato e associação criminosa – ambas imputações que pesam contra Janones.
A semelhança com o caso do Senador Flávio Bolsonaro é o que mais tem chamado atenção do público. Sobre ele, ainda em 2020, o Núcleo de Assessoramento e Estudos Técnicos concluiu pela impossibilidade jurídica da representação ante o não atendimento do requisito previsto no art. 14, § 1º, inciso III, do Código de Ética e Decoro Parlamentar do Senado Federal, que veda o processamento contra atos praticados em período anterior ao mandato.[10] Em que pese o CEDP da Câmara dos Deputados não replicar a previsão, a doutrina identifica, mesmo diante de divergências de posição dentro da Casa, a consideração do mesmo critério de exame preliminar.[11]
As apurações complicam o caso, uma vez que os fatos parecem ter ocorrido no dia 5 de fevereiro de 2019, ou seja, logo após a posse dos Deputados eleitos para a 56ª legislatura (2019-2023), trazendo contemporaneidade ao caso. E como o material divulgado parece vir dos ex-assessores do parlamentar, que não negou a veracidade dos áudios, demonstrar a relação temporal-causal entre o ato praticado e a investidura no mandato eletivo não será tarefa difícil no inquérito. “Em matéria de governo, cúmplices são necessários; sem eles a obra não seria concluída”[12], diria Napoleão.
Tese quanto ao princípio da unidade legislativa também não afasta a possibilidade da perda extraordinária do mandato[13], pois, mesmo tomando a manifestação popular nas urnas como obstáculo ao processo, os fatos só vieram a conhecimento público vários meses após o início da 57ª legislatura (2023-2027) – isto é, os eleitores não tinham subsídios para se manifestar quanto à reprovabilidade da conduta. O próprio STF entende que o referido princípio não veda o seguimento de processos de cassação.[14]
Tudo indica que as normas e os precedentes estão contra Janones; sua esperança é apostar em como a composição atual da Câmara entenderá a elasticidade do decoro parlamentar. Aqui entra a avaliação moral-política inerente ao juízo que os parlamentares fazem de seus pares em situações como essa. Não que eventual decisão de cassação não possa sofrer controle de legalidade pelo STF[15], mas o ponto é que o conteúdo jurídico do decoro parlamentar é determinado por fatores morais e políticos, tornando-o variável no tempo, no espaço e até pela composição da Casa. Caberá a Janones se conformar com a perda do mandato, ou buscar se aproximar de seus pares com intuito de reverter o resultado desfavorável – como tentou o Eduardo Cunha, em 2015.
O contexto político é fator de tamanha relevância que há notícia de um grande acordo entre governo e a oposição para arquivar nada menos que 22 processos perante o COETICA.[16] Com mais essa “janela” fechada, o caso Janones poderia representar mais um desgaste para a base governista e oportunidades para a oposição.
Casos como esse nos levam à reflexão sobre a necessidade de se estabelecer um novo regime de cuidados exigíveis entre os próprios parlamentares – haja vista que Janones não poderá argumentar, por óbvio, pelo desconhecimento da Lei.[17] Fala-se muito em compliance partidário, mas a integridade individual parece estar restrita às bravatas da corrida eleitoral, servindo apenas como meio retórico de captura de votos. É tempo de se exigir um modelo de compliance aplicável aos próprios parlamentares, individualmente.
Os próximos dias revelarão se o alerta de La Rochefoucauld chegou aos ouvidos de Janones: até agora, não deu certo apelar à alegação de fake news sobre fatos absolutamente notórios e confessos. E nada mais antinatural do que tratar como natural o que não é.
[1] LA ROCHEFOUCAULD, François de. Reflexões ou sentenças e máximas morais. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2014, p. 66.
[2] Autos do Inq. 4.949/DF. Acompanhamento em: https://portal.stf.jus.br/processos/detalhe.asp?incidente=6807054
[3] Que pode ser conferida na página de acompanhamento da REP 29/2023 em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2410600
[4] Recurso Especial Eleitoral 060023582/SP, Rel. Min. Alexandre de Moraes, Acórdão de 19.8.2021, DJe 14.9.2021. (NUP 0600235-82.2020.6.26.0001)
[5] Ver o rol do art. 4º do CEDP.
[6] Ver o rol do art. 5º do CEDP.
[7] Interessante notar que alguns corpos legislativos subnacionais tentaram resolver qualquer dúvida quanto à incidência da sanção ao ampliar a redação do CEDP para “perceber ou tentar perceber”. Ver o exemplo do Código de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara Municipal de Castanhal/PA, aprovado pela Resolução n. 005/2018. Disponível em: https://camaradecastanhal.pa.gov.br/wp-content/uploads/2018/06/Resolu%C3%A7%C3%A3o-005-2018-de-14-de-mar%C3%A7o-de-2018.pdf Acesso em 13.12.2023.
[8] SOARES, Alessandro de Oliveira. Processo de cassação do mandato parlamentar por quebra de decoro. São Paulo: Saraiva, 2014, pp. 57-66.
[9] Disponível em: https://www2.camara.leg.br/a-camara/estruturaadm/eticaedecoro/processos.html Acesso em 13.12.2023.
[10] O Parecer n. 445/2020 – NASSET/ADVOSF está disponível em: https://legis.senado.leg.br/sdleg-getter/documento?dm=8873332&ts=1686603004261&disposition=inline Acesso em 13.12.2023.
[11] De um lado, há o posicionamento de que a conduta deve ser contemporânea ao mandato legislativo, conforme entendimentos firmados pelo Min. Celso de Mello, no MS 24.458 MC/DF, e pelo então Deputado Federal José Eduardo Cardozo, na Consulta n. 001/2007. De outro, há o posicionamento do Deputado Federal Carlos Sampaio, firmado no Parecer n. 01/2011, quando entendeu que o CEDP extrapola seus limites por estabelecer um critério não previsto pelo texto constitucional. Sobre isso, ver: SOARES, op. cit., pp. 137-164.
[12] BONAPARTE, Napoleão. Manual do líder: aforismos escolhidos e prefaciados por Jules Bertaut. Porto Alegre: L&PM, 2011, p. 49.
[13] SOARES, op. cit., pp. 145-151.
[14] MS 24.458 MC/DF, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 21.2.2003; MS 23.388-5/DF, Rel. Min. Néri da Silveira, DJ 20.4.2001.
[15] Cf. SOARES, op. cit., pp. 199-206.
[16] Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/politica/2023/12/6776039-conselho-de-etica-encerra-ano-com-acordao-entre-pt-e-pl-para-salvar-mandatos.html
[17] Conforme as previsões do art. 3º da Lei de Introdução às Normas do Direito brasileiro e do art. 21 do Código Penal.